Da Paixão ao Abismo – E quando o Pesadelo se Repete?

A pandemia COVID-19 colocou-nos barreiras à normalidade desde Março de 2020, as medidas de confinamento e isolamento social surpreenderam-nos e foram-se multiplicando pelo mundo fora e afetando todas as atividades e o desporto não foi exceção! Mas quando tudo parecia pronto para retomar a atividade desportiva normal, um novo pico de contágios voltou a conduzir a medidas mais apertadas e o desporto mais uma vez foi grandemente afetado. Podemos mesmo considerar que a partir de Janeiro de 2021 o desporto funcionou a três velocidades. Por um lado, os atletas profissionais ou profissionalizados, como por exemplo as primeiras divisões de diversas modalidades que confinaram e interromperam a sua atividade aquando do primeiro confinamento , mas que no segundo continuaram a treinar e competir de forma regular; de outro modo, os atletas de competições seniores (adultos) que tinham retomado a sua atividade desportiva regular e que se viram novamente impossibilitados de continuar a sua rotina desportiva e competitiva; e, por fim, os atletas de formação cuja maioria se manteve sempre em paragem desportiva desde do inicio da pandemia até ao fim do segundo confinamento obrigatório já em 2021.    

O presente artigo visa refletir sobre a comparação entre os indicadores de saúde mental dos atletas no primeiro e segundo confinamento. Enquanto indicadores de saúde mental dos atletas foram utilizados o stress, a qualidade do sono e ainda os níveis de felicidade.

Relembramos que estes dados foram recolhidos a dois tempos, no primeiro e segundo confinamento e convidamos o/a leitor(a) a ver com atenção a imagem seguinte. Num primeiro olhar rapidamente concluímos que há uma melhoria ao nível do stress e da qualidade do sono, bem como um aumento na felicidade. Algo que nos pode levar a pensar que todos nós nos adaptamos às mudanças e que criamos estratégias para lidar com as adversidades. Isto é verdade! Mas um olhar mais atento permite-nos perceber que esta melhoria evidente ocorre sobretudo no grupo dos atletas que continuaram a competir mesmo durante o segundo confinamento. A grande quebra dos níveis de stress, melhorias de sono e felicidade ocorre nestes atletas, pois aqueles que pela segunda vez se viram privados das suas rotinas competitivas aumentaram o nível percecionado de stress e uma maior quebra na felicidade.

Apesar da aparente melhoria mantem-se o facto de mais de 50% desta população apresentar níveis de stress que poderão ser patológicos, ou sejam níveis que afetam o seu funcionamento normalizado/padrão, tal como no primeiro confinamento. Adicionalmente, 34% apresenta também níveis de perturbação de sono com risco para a saúde e 40% níveis de felicidade considerados baixos. Os atletas de competição, independente do seu caracter profissional ou não, iniciam muitas vezes a atividade desportiva ainda na infância, mais do que uma atividade física ou um hobby este desporto passa a ser um modo de vida.  É em função desta atividade que se constrói a rotina, é neste espaço que muitas vezes se encontram os núcleos de relações próximas e é também através da prática regular diária que muitos atletas aprendem a fazer a sua gestão emocional. O desporto é sem dúvida uma fonte de identidade e regulação, como tal não surpreende que a sua privação possa conduzir ao aumento de fatores que possam contribuir para o desajustamento da saúde mental.

Adicionalmente, podemos ainda questionar por que razão os níveis de stress nos atletas que se encontram a competir, apesar de tudo, ainda estarem ligeiramente elevados. Aqui podemos discutir o efeito de um outro fator e não estamos a falar de ansiedade competitiva! É sim importante salientar a relevância do fator incerteza. Os atletas treinam de forma árdua para competições ou jogos específicos, sem saber se um teste no dia seguinte os poderá afastar do(s) seu(s) objetivo(s). Podemos relembrar quantas vezes vimos jogos ou competições adiadas e/ou ainda atletas excluídos. Relembramos aqui três situações, a equipa de hóquei patins do Futebol Clube do Porto, após se ter classificado para primeira Taça 1948 ficou de fora devido a casos positivos de covid-19 na equipa. João Cancelo, futebolista, ficou de fora no campeonato da Europa devido a teste positivo. Também Frederico Morais, surfista, viu a sua primeira participação nos jogos olímpicos cancelados devido ao Corona Vírus. Oportunidades, competições, sonhos cancelados por algo que os atletas sentem não ter conseguido controlar apesar de todos os cuidados e medidas tomadas. Esta insegurança, esta incerteza, o sentido de ausência de controlo são fatores que condicionam, também o bem-estar psicológico e a saúde mental dos atletas.

Estes resultados têm impacto quer na saúde e desenvolvimento individual, mas também claramente na sua prestação desportiva/competitiva. Quer os níveis elevados de stress quer às perturbações do sono conduzem a quebras nos níveis de concentração tornando-nos entre outras coisas mais propensos a comportamentos de risco de acidentes. Além disso, são muitas as investigações que têm demonstrado o impacto do stress percebido dos atletas na sua vulnerabilidade às lesões e a lesões desportivas mais graves. Adicionalmente, quer os elevados níveis de stress quer as perturbações do sono estão claramente associadas a quebras de produtividade, ou seja, do rendimento desportivo. Da mesma forma que as alterações metabólicas provocadas pelas perturbações do sono conduzem a fadiga e falta de energia, provocando também uma maior lentidão na recuperação física dos atletas. Destaca-se, ainda, a relação entre o stress e os problemas ou doenças cardíacas e cerebrovasculares, a fragilidade do sistema imunitário, dores musculares devido à tensão provocada, problemas sexuais e diabetes. As alterações provocadas pelos níveis de stress percecionado não se restringem às alterações físicas afeta também a função cognitiva e comportamental dos indivíduos. Nomeadamente, maior irritabilidade, depressão, falta de concentração e memória, ansiedade e poderá conduzir ao consumo de substâncias estupefacientes. Por sua vez, as perturbações do sono podem também conduzir a ansiedade, depressão, fadiga, irritabilidade, baixa concentração, quebras de aprendizagem, quebra de rendimento, desenvolvimento de distúrbios respiratórios, cardíacos e até psíquicos.  Em suma, os indicadores utilizados alertam-nos para o facto que mesmo de forma indireta as restrições impostas pela situação pandémica podem ter um impacto substancial ao nível do desenvolvimento individual e da saúde física e mental de todos indivíduos. De realçar que estas problemáticas associadas aos elevados níveis de stress e perturbações de sono são as mesmas para todos indivíduos, não exclusivo de atletas e, como tal afetará também o rendimento/desempenho e bem-estar de qualquer outro profissional.

Hoje, no arranque de mais uma época desportiva e num mês de vários reinícios importa refletir sobre estes temas, quer diretores desportivos quer treinadores deverão atender às diferenças que esta nova época acarreta. As incertezas ainda são elevadas e o fantasma dos testes positivos continuam bem presentes, bem como as inseguranças de atletas, jovens ou menos jovens, que têm estado privados da atividade podem ser elevadas e acompanhadas do receio de perda de competência técnica, tática e física. Todos os elementos de uma organização desportiva devem estar atentos aos seus atletas, fontes de produtividade organizacional. Acima de tudo salientar que muitas vezes nem tudo é o que parece e este ano tem sido épico no que concerne ao tema saúde mental no desporto. Simone Biles emblemática ginasta Norte Americana demonstrou que muitas vezes estes atletas de excelência podem viver no limbo entre o sucesso e a “queda emocional”. Como tal o rendimento de um atleta, ou simplesmente de qualquer outro profissional, não deverá nunca significar que “está tudo bem”! Nem é porque os campeonatos parecem arrancar normalmente que passa a estar tudo bem, para além das pressões regulares que o desporto coloca aos atletas, são múltiplos os fatores que continuam a adicionar insegurança e incerteza nestes tempos que ainda não consigo chamar de “normais”.

As mudanças, interrupções e alterações nas rotinas não se concentram só no contexto desportivo, são extensíveis aos mais diversos contextos, onde aqueles que são a fonte de rendimento organizacional, as pessoas, os recursos humanos, viram muitos das suas práticas regulares, as suas equipas, a sua forma de trabalho, o local, o horário alterado. Independentemente do contexto vive-se tempos turbulentos onde as inseguranças e incertezas dos colaboradores devem ser respeitadas e levadas em consideração. A saúde mental e bem-estar não são exclusivos do contexto desportivo e, neste sentido todas as organizações devem estar sobre aviso iniciando processos de avaliação, mitigação e intervenção ao nível da saúde e bem-estar dos seus colaboradores.