Desenterrando a batata da crise

Antes de começar, permita-me que eu me apresente: meu nome é Eduardo, sou profissional de comunicação, escritor, palestrante e treinador em liderança. Pra simplificar, prefiro me definir como um contador de histórias, com o propósito de inspirar pessoas e empresas a transformarem a sua própria história. Essa última frase resume o caldo daquilo que faço hoje, fruto da convergência das minhas frentes profissionais, entre elas a literatura, a educação e o desenvolvimento organizacional.

Como um contador de histórias, gostaria de combinar algo contigo: as linhas a seguir são um momento de prosa, não uma apresentação acadêmica de conclusão de curso, que requer lastro bibliográfico, fundamentação teórica e trabalho impresso e encadernado. Ela traz, sim, uma visão muito particular de questões com as quais me deparei e ainda me deparo ao longo da minha jornada de eterno aprendiz, na qual fui testemunha não de uma, mas de várias crises das mais variadas cores, formas, tempos e tamanhos. Vamos lá, então?

Bem… não é novidade pra ninguém que nós atravessamos tempos complexos, certo? As mudanças se apresentam numa medida tão intensa, mastigando e cuspindo planejamentos, atropelando culturas organizacionais mal consolidadas, extinguindo profissões, criando outras tantas, enfim… são muitas questões que, pela simultaneidade, acabam atordoando muita gente. Gente que, quando menos se espera, se vê abraçada pelos tentáculos da crise.

Quando falamos de crise, especialmente aquelas macro, que afetam a todos, não é incomum invocarmos o efeito econômico da crise como sendo a crise em si. É quando vemos nosso poder de compra diminuindo, os preços subindo, juros, impostos, mais impostos e tudo mais. Então viramos e decretamos:

– Estamos vivendo uma crise econômica!

Calma lá! Apesar da desequilibrada distribuição do dinheiro, nunca houve tanta riqueza circulando no mundo, fruto das inúmeras evoluções e inovações que experimentamos especialmente no último século, com maior concentração ainda nas últimas décadas. Dinheiro circulando há, concentrado em menos mãos é fato mas que, cedo ou tarde, acaba circulando por aí na forma de investimentos, fazendo a economia girar, empregos surgirem, bolsas subirem e tornando mais positivos os demais indicadores que costumamos testemunhar quando percebemos que tudo está indo hipoteticamente bem.

Ou seja: para ir além das aparências, é preciso cavar um pouco mais fundo, tal e qual aquele ditado brasileiro que resume a complexidade em uma frase bastante prosaica: “o buraco é bem mais em baixo”.

Pás em mãos, começamos então a escavar este negócio chamado crise. Tiramos a grama superficial, visível, e vamos aprofundando a terra, em busca das suas raízes. Um pouco que escavamos e já percebemos que, aquilo que transparece como “crise econômica” na superfície, está lastreada em algo um pouco mais difuso logo abaixo da terra.

O pensamento binário, polarizado, que não possibilita terreno fértil para melhores negociações dentro ou fora das nações acaba, por si, paralisando a economia de muitas delas, gerando aquilo que agora já compreendemos como o efeito econômico de uma crise política.

O problema então ganha outra dimensão. Impulsionado por interesses próprios, individualistas e que, não raro demandam nas mais variadas formas de corrupção – seja ela a que envolve dinheiro, tráfico de influência ou uso desequilibrado do poder – torna-se evidente que o substantivo “política” empobreceu. Logo ele que possui em seu significado original a arte e a ciência de governar, dirigir e administrar nações ou Estados com base na negociação, conciliação e aproximação de visões e interesses distintos e, pautada pela urbanidade e civilidade na condução da coisa pública.

E, assim, acabou tornando-se um adjetivo bastante pejorativo. Sim, você sabe que quando alguém refere-se a alguma pessoa dizendo que “ela é política”, não necessariamente isso significa um elogio. Esse desvirtuamento tão visível nos atuais governantes eleitos democraticamente, especialmente aqueles mais barulhentos, adeptos declarados do princípio “falem mal, mas falem de mim”, provam-nos isso a todo instante.

Um efeito que acomete a tantos não pode ter uma natureza isolada, mas sim sistêmica. E, sendo efeito naturalmente deixa de ser causa, o que nos estimula a escavar um pouco mais no terreno da crise para compreender onde que ela pode estar se originando.

Mãos nas pás e vamos continuar nossa jornada escavatória, já que percebemos que a crise política também está mais para um efeito do que uma causa. E nem precisa cavar muito, viu? Um pouco que a gente se aprofunda neste efeito, encontramos aquilo que já citamos com outras palavras no parágrafo anterior: o desvirtuamento da liderança. Na essência e na etimologia, a boa liderança sugere ascendência moral, autoridade conquistada pelo respeito e não pelo temor. Aquela figura humana que inspira ideais maiores, conduzindo e elevando o grupo a algum tipo de evolução, a um novo patamar de consciência, principalmente.

Então eu olho, olho, olho para todas as figuras políticas da atualidade – não apenas em meu país, mas também em outros – e percebo que aquelas de maior expressão passam ao largo deste tipo de influência. Empenham-se a todo custo na construção e na alimentação de seguidores fanáticos, hordas de inocentes (ou nem tanto) úteis (ou nem tanto também), movidos por um raciocínio binário (“eles, o mal” versus “nós, o bem”), incapazes de uma reflexão mais aprofundada e crítica sobre a diversidade que compõe o coletivo.

Neste universo, a repetição ostensiva de mantras e #hashtags segue por caminhos tortuosos, além do orgulho eleitoral que torna muitos incapazes de admitir que o “grande pai” do momento possa estar fazendo alguma(s) grande(s) bobagem(ns). Afinal, desde que o homem começou a documentar a própria história, não conheço nenhum episódio em que o fanatismo teve humildade em dar um passo atrás, reconhecendo ter percorrido caminhos eticamente questionáveis.

Ao contrário, os fanáticos sempre aceleram na direção oposta, num eterno contorcionismo retórico que faça caber sua narrativa. E para caber, não raro sacrificam a própria integridade, enquanto seu objeto de adoração política desfruta do mais absoluto conforto e proteção.

Percebemos então que aquilo que chamávamos de crise econômica na verdade era efeito econômico de uma crise política. Ao desmontar a crise política, percebemos que na verdade ela era o efeito político de uma crise de liderança. E você deve estar perguntando:

– Agora acabou a escavação, né? Chegamos no limite? Minhas mãos já estão doendo!

Calma, que ainda tem muita terra por cima dessa batata. A crise de liderança também está mais para efeito do que causa. Então pegue sua pá e vem comigo.

Liderança é uma competência que se sustenta, acima de tudo, na congruência entre o que se pensa, o que se fala e o que se faz. A sinergia entre estes pontos de força revela a autenticidade – ou não – da pessoa enquanto líder: se ela realmente vive o que prega ou se é um simulacro de liderança que se sustenta numa posição de destaque pela bajulação daqueles que se vendem como amigos do rei ou pelo temor imposto àqueles que já demonstraram alguma dissonância.

Nem vou falar aqui daquela liderança que aponta para o lado obscuro e cruel dentro daquilo que conhecemos como minimamente humanista, e sim daquela que se mistura, que engana bem e que sustenta suas decisões frente aos dilemas que enfrenta a partir de seus reais Valores. Valores que não são claros, nem declarados, muito menos praticados e quase nunca percebidos acabam então se tornando a causa raiz deste efeito que é a liderança ausente ou ruim, o que por sua vez, acaba destruindo toda a cultura de uma organização, de uma sociedade ou até mesmo de uma nação.

Pois é. A crise que acreditávamos ser de liderança nada mais é que o efeito de uma outra crise, que é a de Valores. Gotas de Valores diluídas homeopaticamente em grandes tanques de água poluída pela falta de ética e de moral costumam causar terríveis dores de barriga no longo, no médio e até mesmo no curto prazo. Vai do nível de exposição à contaminação.

– Ufa, chegamos então na raiz do problema, Eduardo?

Olha, tenho uma notícia pra lhe dar que talvez lhe desagrade um pouco mais: ainda não. A crise de Valores não é a crise em si. Ela também está mais para efeito do que causa. Portanto, lhe peço um pouco mais de fôlego e paciência, pois estamos quase lá. Prepare a pá e vamos.

Quando falamos dos Valores que sustentam uma sociedade, em todos os aspetos em que ela se apresenta, falamos especialmente daqueles que garantem sua perpetuação. Os mesmos que nos permitiram chegar em frangalhos, porém vivos, até aqui. Valores que permitam a tomada de decisões que favoreçam ou ao menos não prejudiquem o tecido social como um todo.

Que possibilitem um mínimo ordenamento para que a humanidade não encontre a oportunidade de se aniquilar binariamente a cada novo conflito. Neste sentido, oportunidade é o que nunca nos faltou.

Valores que permitam à humanidade construir terreno seguro para a convivência, sem cair nos extremos da santidade ou da animalidade.

Que eduque o meu olhar para com o outro, com olhos de ver, e não apenas olhos de desejar que ele suma por não concordar comigo ou partilhar das mesmas ideias, num mundo cuja maior força sempre foi, é, e continuará sendo a diversidade.  

Falamos dos valores que nos ajudam a construir uma Ética que, se não perfeita, ao menos nos coloque num movimento contínuo de aperfeiçoamento das relações humanas, recaindo sobre os compromissos individuais que promovem um efeito coletivo.

Falamos de uma palavrinha que gradativamente vem sendo deixada de lado ou, ao menos, construindo uma ética-flex, uma ética da conveniência, geração após geração. Uma ética onde vigora com toda a força o aforismo brasileiro “farinha pouca, meu pirão primeiro”, que valida o individualismo das nossas decisões sempre orientadas no sentido de levar vantagem em tudo: se existem três, são dois pra mim e um pra você. Ou, pensando melhor: três pra mim e você que se lasque.

Como você já deve ter percebido, aquilo que há pouco qualificamos como uma crise de Valores, na verdade é o efeito de uma crise um pouquinho mais profunda.

Se você me acompanhou até aqui, neste nosso exercício de filosofia bruta, pode deixar a pá de lado agora e descansar as mãos. Chegamos, enfim, na batata.

Ela está agora na minha, nas suas e nas mãos de todos aqueles que não se conformam com as coisas da forma como elas estão.

O nome dessa batata? Educação. E é preciso tirá-la urgente deste buraco.