Maldito número 6
A vida de cada um de nos fica, por vezes, marcada por acontecimentos que a mudam de modo abrupto, e que nos deixam marcas profundas para o futuro.
No meu caso, e não sendo nada dado a superstições, tenho um marco bem assinalado ao dia 6/6/2013 (notar que a soma dos algarismos de 2013 dá 2+0+1+3= 6), e que me faz usar a expressão “maldito número 6”.
Nesse dia, como fazia muitas vezes, fui almoçar a casa em Gondomar (a sul do Porto), sozinho, e liguei a TV, para ver as noticias do Jornal da Tarde enquanto comia.
Uma noticia chama de imediato a minha atenção, ao referir que um grave acidente tinha envolvido um grupo de 7 estudantes da Universidade do Porto, perto de Famalicão, quando vinham de Fafé para a Faculdade. Havia um deles em estado critico e 6 que teriam escapado sem perigo de vida.
O meu filho único André, na altura com 19 anos, estudante do 2° ano de Engenharia e Gestão Industrial na FEUP, tinha tornado posse na véspera na Direcção da Associação de Estudantes e tinha ido, em conjunto com os colegas, celebrar o facto para a quinta de um deles em Fafé, onde pernoitaram, e regressariam nessa quinta-feira dia 6.
Desperto pela coincidência, resolvi ligar-lhe, por descargo de consciência. O telemóvel estava desligado.
Como isso acontecia algumas vezes, fosse por bateria descarregada ou porque poderia estar em aulas, embora algo intranquilo, terminei o almoço c segui para uma reunião de trabalho que tinha agendada no Porto.
Terminada a reunião, e jã de regresso ao escritório em Leçaa do Balio, recebi um telefonema da namorada do André, muito preocupada, perguntando-me sc sabia algo dele, uma vez que não tinha noticias concretas, mas sabia que ele tinha tido um acidenta ao fim da manhã, quando regressavam de Fafe e teria ido para o hospital de Braga.
Soaram-me todas as campainhas internas e fiz a associação com a noticia que tinha visto na TV a hora de almoço.
De imediato fiz apelo aos meus contactos no hospital, procurando que me dissessem alguma coisa sobre o estado do André. A pessoa minha amiga a que liguei disse-me que ia tentar saber e me diria algo de seguida.
Passados poucos minutos recebi uma chamada de um numero que não conhecia e, ao atender, responde-me uma voz masculina, dizendo ser medico dos cuidados intensivos e que tinham recebido um jovem politraumatizado, que não estava identificado, e que os colegas teriam referido chamar-se André Silva.
Disse-lhe que era pai de um jovem André Silva e que tinha recebido a noticia do acidente, pelo que provavelmente seria ele e gostava de saber o seu estado. Disse-lhe que era professional de saúde e que estava preparado para ouvir a verdade, qualquer que ela fosse.
Ele referiu-me que o jovem cm causa estava num estado muito reservado e se era possível eu lá passar para proceder a identificação.
Disse-lhe quo sim, demoraria cerca de 45 minutos e de imediato entrei na autoestrada rumo a Braga.
Depois de algumas chamadas telefônicas pelo caminho a avisar as pessoas de família e a empresa onde trabalhava, cheguei ao Hospital.
Estava a minha espera a pessoa amiga a quem liguei, bem como um medico amigo que ali trabalhava, que me acompanharam aos cuidados intensivos. Eu tremia fortemente, tentando conter-me, na esperança de uma palavra animadora, mas com receio de uma noticia brutal.
Equipei-me com a farda própria para poder entrar nos cuida- dos intensivos e, assim, acompanhado pelo medico dos cuidados intensivos, deparei-me com o meu André ligado as maquinas, em coma induzido e com alguns hematomas visíveis na face. Tinha um ar sereno.
Levei um tremendo soco no estômago, confirmei ao medico que era mesmo o meu filho e saímos para o gabinete dele porque ele pediu para falar comigo. Sentia o corpo a vacilar e a cabeça como um barril de pólvora prestos a explodir.
Chegados ao gabinete do medico voltei a perguntar-lhe qual o estado do André, ao que ele me respondeu: “È muito grave. Tem múltiplas lesões internas e não vemos condições de o conseguir tirar daqui vivo.”
Fiquei sem chão e comei a chorar.
Aquele André de sucesso, excelente aluno, filho fabuloso, amigo alegre e divertido, jogador de futsal de primeiro piano, tinha chagado ao fim. Não veria mais aquele sorriso traquina, o ar irreverente e criativo, o jovem com visão moderna e de futuro.
O medico, com voz serena e afável, tentando tranquilizar-me, disse-me que poderia ficar o tempo que quisesse ao lado dele e que estivesse preparado porque, por ele ser um jovem atleta, ainda teria de ali permanecer algum tempo ate que pudesse ser aclarada a morte cerebral.
Num turbilhão de emoções e sem conseguir raciocinar muito bem, voltei para o lado do André, que mantinha o mesmo ar sereno que tinha visto poucos minutos antes. Resolvi fazer-lhe uma caricia
na face direita e qual o meu espanto quando vejo escorrer-lhe umas lagrimas pela cara abaixo.
Senti uma vontade enorme de gritar, mas contive-me e simplesmente chorei.
Eu estava a entrar num novo mundo, que nunca tinha imaginado, desconhecido e para o qual nunca me tinha preparado.
Fiquei ali algum tempo numa contemplação profunda e silenciosa.
Depois sai e já tinha a espera familiares e amigos com quem tinha de partilhar a tristeza da tragédia que tinha acabado de vivenciar.
Mas como que assolado por um choque elétrico violento, cerrei os dentes e disse para todos os que ali estavam: não teremos mais o André, mas farei tudo para preservar e honrar a sua memória, prolongar o mais possível o sou sorriso e energia, e não me entreguei a dor e ao sofrimento.
As palavras de alento e conforto que todos me iam transmitindo, naturalmente sinceras, mas sem poderem compreender (e ainda bem) aquilo que eu verdadeiramente estava a sofrer, tentava concentrar a melhor palavra para descrever o momento: raiva, injustiça, revolta…
A tarde foi passando e, com o aproximar da noite, aconselharam-me a tomar um comprimido para dormir, o que nunca imaginara fazer, tai a facilidade com que sempre adormeci. Mas acedi a sugestão e assim fiz.
Na manha seguinte restava aguardar e começar os preparativos próprios daquelas ocasiões. Contactada a funerária logo fui informado que, após a morte cerebral, o funeral certamente ainda demoraria uns dias porque ia entrar o fim de semana e na segunda-feira seria o feriado de 10 de junho, pelo que nunca haveria autopsia antes de terça-feira e o funeral nunca antes da quarta-feira seguinte.
Perante aquele canário de vários dias de impasse, pensei no que poderia fazer e ocorreu-me lançar uma campanha na comunicação social, a que chamei FLORES POR CAUSAS, e com que pedi a todos os que tivessem intenção de Ievar flores para o funeral do André, que não o fizessem e usassem esse dinheiro para depositar numa conta.
Os 9.000 euros assim recolhidos foram destinados a duas causas em que o André estava envolvido: o futsal c a faculdade. Foram entregues 4.500 euros a Associação de Futebol do Porto, com a finalidade de serem distribuídos nas duas épocas seguintes, aos jovens quo, jogando futsal, tivessem as melhores notas nos diferentes escalões de ensino; e os outros 4.500 euros a FEUP para serem entregues, ao longo de 9 anos, ao aluno que, de entre os melhores alunos de cada curso daquela faculdade, apresentassem um projecto de intervenção Cívica ou de voluntariado de relevo. E assim se fez até ao ano 2021.
Os dias ate ao funeral, com toda a azafama das burocracias e procedimentos próprios da ocasião, iam adensando o turbilhão de emoções, a gestão das mensagens e palavras que íamos recebendo e a brutal habituação a uma nova realidade, com um vazio muito grande e quo nunca mais séria preenchido, restando-nos fazer apelo a melhor memória que pudéssemos para lembrar o que foi o percurso do André.
Nesses dias de intervalo, e nesses recordar do passado, um dos meus melhores amigos relembra-me um dia, em que Ihe tinha mostrado, com orgulho, uma composição feita pelo André, na altura com cerca de 12 anos, quando a professora pediu que escrevessem com o mote “o meu melhor amigo”.
Surpreendentemente, a composição do Andre chamava-se DESTIXO DE UM PARAFUSO e relatava o percurso de um parafuso que o André acompanhou desde um supermercado, onde tinha ido às compras com a mãe, até a Torre Eiffel onde terminou depois de um longo percurso de superação e evoluções sucessivas e a fazer parte de um processo de melhoria apos recuperação daquele famoso monumento de Paris.
Lembrei-me dessa composição e, ao chegar a casa, fui procura-la na prateleira onde a tinha guardado, muito cuidadosamente, há muito tempo atras. Mostrei-a a algumas pessoas amigas, que me incentivaram a fazer a publicação da mesma porque consideravam um texto maravilhoso c inspirador, sobretudo quando escrito por um jovem de 12 anos.
Veio-me então a memória que mais tarde, já com cerca de 15 ou 16 anos, no liceu, quando pediram para fazer um jogo de xadrez em Trabalhos Manuais, o André fez um jogo cm que todas as peças foram construídas com diferentes tipos de parafusos. E ainda depois, anos mais tarde, ao ir para a Faculdade, escolheu a FEUP c o curso de Engenharia c Gestão Industrial, em que a presença dos parafusos também estaria certamente presente.
Ao reflectir sobre a importância do Parafuso, percebi que estávamos em presença de uma coisa aparentemente banal, que encontramos com frequência no nosso quotidiano, que muitas vezes nos passa despercebido, mas que funciona com grande relevo nos mais diversos domínios, seja a juntar coisas, ou mesmo como parte integrante na construção de diferentes soluções.
Um parafuso sozinho não nos serve de grande coisa, mas integrado no meio de um processo é muitas vezes fundamental. Assim foi o André, um verdadeiro Parafuso, consciente da sua relevância, mas também da sua insignificância se isolado de tudo o resto.
Pensei então que a ideia de publicar o livro, poderia ser um bom motivo para preservar a memoria do André e deixar o registo do quo ele foi enquanto nos acompanhou.
A publicação livro e o lançamento do mesmo em locais emblemáticos, como a Livraria Lello no Porto e outros, foi um sucesso e o corolário daquele processo traumático, ajudando a amaciar uma dor quo me vai acompanhar ao longo de toda a minha existência.
E que quando um filho perde um pai ou mãe, fica órfão; quando um marido ou esposa perde o companheiro, fica viúvo ou viúva, mas quando um pai perde um filho não tem sequer direito a uma palavra que classifique esse estado, tai o carácter anormal e contranatura da situação.
Mas não me restava outra solução que não fosse o seguir em frente, o fazer do resto do percurso de vida, algo de honrado, com sentido de missão e pensando ainda mais no bem comum.
Já não haveria mais necessidade de preocupação com o futuro do descendente, nem de idealizar projectos profissionais futuros de sucesso, que Ihe estariam destinados. Restava olhar o futuro de outro modo, relativizando muito algumas situações, que pareciam significar enormes pedras no caminho de alguns, mas que para mim não passavam de pequenos grãos de areia, depois de ter ultrapassado tão violenta tormenta na vida.
Muitos pressagiavam o meu fim profissional, porque sugeriam que, depois de tão grande pancada, nunca mais teria capacidade de me Ievantar. Era mais um teste a minha capacidade de resistir.
A empresa onde eu trabalhava fica também assolada polos problemas mas financeiros decorrentes da enorme crise do período da TROIKA em Portugal e, após várias tentativas de a salvar, acabou mesmo por não resistir e, no inicio de 2015, vejo-me na necessidade de procurar um outro emprego, já que esta sempre foi a minha única fonte de rendimento.
Recebi nessa altura um convite para ir trabalhar como Director Administrativo e Financeiro para a Altice na República Dominicana, após o processo de compra de várias operadoras de telecomunicações que aquele grupo tinha feito em varias partes do mundo.
Nunca tinha imaginado emigrar, mas aceitei o desafio e a possibilidade de mostrar a mim mesmo que era capaz de superar mais um desafio.
Assim foi e, depois de vários meses nesse destino distante, dá-se o regresso a Portugal para trabalhar noutra empresa do mesmo grupo.
Ate que, em meados de 2016 surgiu o convite para ocupar o cargo que ainda agora desempenho, de Presidente do Conselho de Administração de um dos maiores hospitais da região Norte (Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa), que emprega mais de 2.600 pessoas e com um orçamento anual superior a 150 milhões de euros.
Nascido em família de parcos recursos, filho de mãe doméstica e pai motorista de camionetas, tinha cm criança o sonho de, um dia, poder ser empregado de escritório da fabrica do Grupo Violas cm Grijó perto de minha casa (a fabrica grande da região).
O sacrifício feito pelos pais para que pudesse estudar, o meu esforço pelos bons resultados na escola e a vontade de evoluir, abriram-me diversas oportunidades que fui aproveitando do ponto de vista profissional.
Já tive cerca de 16 entidades patronais, cm diversos sectores de atividade, desde a auditoria aos seguros, do vinho do Porto ao têxtil, da cortiça aos correios, dos equipamentos as comunicações e aos hospitais.
Lutei, tive sorte e algumas frustrações. Mas superando todas as adversidades (mesmo as mais brutais da vida pessoal), aqui continuo, para cumprir, da melhor forma possível, a missão que ne for atribuída pelo curso da vida e pelos acasos com que possa ser confrontado.
E ao desempenhar funções num sector como a saúde, posso dar o meu contributo para o bem dos outros e assim poder dar ainda mais sentido a vida.
Capítulo do livro: Líderes Visionários