Novos tempos, novas medidas

Não fosse trágica a situação que vivemos e o título deste artigo poderia ser “Dá-se recompensa a quem encontrar todos os sonhos, expetativas e promessas de mudanças que tínhamos para 2020.”

Os mais otimistas dirão que estão suspensas, mas estão aí, os mais pessimistas dirão perderam-se para sempre.

Eu digo que estão aí, à espera de oportunidades, mas que têm que ser repensados e adaptados à realidade que hoje vivemos. Não falo em novo normal, que de normal não tem nada, nem de novo, porque infelizmente também não é o caso. É o que é, é o nosso presente, numa construção diária do futuro que se quer sempre melhor.

E neste presente é inevitável falar de vida profissional e da sua conjugação com a vida pessoal.

Muitos de nós tivemos que nos adaptar para, em pouco mais de 48 horas, passar a trabalhar a partir de casa ou de outro local que não o habitual, mantendo (pelo menos) o mesmo desempenho e conciliando esse trabalho com a nossa vida pessoal e com as nossas obrigações familiares.

E isso não foi nada fácil e implicou (e implica ainda) uma enorme capacidade de adaptação e de resiliência.

Aqueles cujas funções o permitiam e cujos empregadores tinham a capacidade de assim manter a sua atividade passaram a trabalhar em teletrabalho. Até aqui tudo normal e positivo.

Mas tivemos que reaprender não só a começar e a acabar o nosso dia de trabalho mas a interrompê-lo. E a assegurar as nossas responsabilidades familiares em simultâneo. Tudo mantendo uma aparente normalidade e harmonia, e sem que ninguém nos explicasse como é que isto se faz num passo de mágica e sem danos colaterais.

Mas perguntam, então o teletrabalho não existia já? Não estava inclusivamente regulado? A resposta é sim, a tudo. Mas o teletrabalho, como o conhecíamos, pressupunha desde logo a vontade de ambas as partes, empresa e trabalhador, de que o trabalho fosse prestado nesse regime. E pressupunha tempo. Tempo de ponderação e de adaptação, também de ambas as partes. Pois se o trabalhador tem que pensar se quer trabalhar em regime de teletrabalho, afastado do contacto com os seus colegas, também a empresa tinha que ter tempo de se dotar e de implementar as tecnologias necessárias para que tal fosse possível.

Esse tempo não existiu. De um dia para o outro chegou a decisão que tínhamos que ir para casa, quiséssemos ou não. E todos aqueles que (afortunadamente, na minha perspetiva) podíamos trabalhar a partir de casa, remotamente, tivemos que o fazer, sem apelo nem agravo, nem tempo para hesitações.

De tal forma que a legislação foi temporariamente alterada e o acordo para se trabalhar em regime de teletrabalho deixou de ser necessário. E esse teletrabalho teve que ser prestado, em melhores ou piores condições, a bem de todos e da economia.

Se era a melhor das soluções? Era, sem dúvida. Se não teve e terá consequências, é outra conversa. Desde logo porque o chamado direito a desligar não estava suficientemente interiorizado, e já agora que não perdíamos tempo com deslocações ou entre reuniões trabalhávamos um pouco mais, e pelo meio geríamos a despensa, as ementas, o apoio a filhos ou a pais, a quem de nós precisasse.

E o que é isso do direito a desligar? É o poder-dever que temos de, a bem da nossa saúde e de uma maior produtividade, sabermos começar e acabar o nosso dia de trabalho, sem estar permanentemente a ver, a responder e também a enviar emails, a fazer mais uma call ou uma Zoom meeting. Pois se até quem trabalhe em regime de isenção de horário de trabalho e por isso receba uma compensação financeira deve respeitar o descanso inter-jornadas como é que isso não aconteceria em regime de teletrabalho?

Pode e deve acontecer e não nos devemos sentir culpados por isso, pelo contrário. Devemos dar o nosso melhor enquanto trabalhamos, mas devemos desligar quando já estamos em condições de o fazer. Os empregadores (mesmo os que achem que não) e as nossas famílias agradecem.

Vamos ser mais produtivos, vamos dar menos erros, vamos sofrer ou provocar menos acidentes, vamos estar mais disponíveis para que seja preciso e para o que futuro nos reserve.

Quanto ao futuro, a Deus pertence. Saibamos ter a inteligência e o bom senso de perceber que temos que dar o tudo por tudo para manter as empresas a funcionar, que teremos de nos reinventar, e sobretudo que teremos que ter a agilidade e a flexibilidade necessárias para nos adaptarmos à realidade que vivemos e que não sabemos até quando se manterá.