Quem parte e reparte, fica com a melhor parte …

A propósito de um artigo que li há poucos dias (Por Nelson Pires, in Executive Digest), achei interessante o tema da fiscalidade sobre os salários e resolvi fazer o exercício de simular um salário, analisar os seus reflexos nas vertentes do trabalhador, da entidade patronal e do Estado.

Para tal, parti de um salário ilíquido de 1000€, ponderei qual o cabaz de compras que o trabalhador consegue obter, que casa pode alugar/comprar, que tipo de vida pode ter na sua perspetiva.

Por outro lado, qual a perspetiva do empregador, quanto lhe custa, que encargos tem e que valor extrai da sua iniciativa empresarial.

Por fim, qual a perspetiva do Estado, quanto recebe e que contribuição retorna, ou seja, qual a proposta de valor que devolve à sociedade.

Vejamos, do lado das receitas de um trabalhador, o que se passa:
Aufere ilíquidos 1.000€. Fazendo os seus descontos normais (TSU e IRS), o líquido que levaria ao fim do mês seriam 778€ (77,8%). Admitamos, ainda, que recebe um subsídio de refeição em cartão no montante máximo isento de impostos (7,63€/dia útil o que equivale a dizer que teria mais 160,23€/mês – média de 21 dias úteis), para fazer face às despesas normais da sua casa.

Agora do lado das despesas, admitamos que este trabalhador reside numa casa alugada, onde pagaria uma renda equivalente a 30% do seu salário líquido, o que o deixaria certamente na periferia, tendo de utilizar um transporte (passe de 40€/mês); teria que adquirir um cabaz de produtos para a sua casa (entre alimentação, bebidas, material de higiene pessoal e da sua casa, etc.) onde utilizasse 30% do seu salário, teria despesas de água, gás, eletricidade, comunicações e TV mensais de 20% do salário, além de ter que almoçar todos os dias perto do seu local de trabalho, onde gastaria, sem qualquer dificuldade, 10€/dia útil. Chegados ao fim do mês, sem qualquer extravagância, ainda conseguiria ter uma poupança de 46€ (que poderia utilizar para capitalizar em Certificados de Aforro ou em PPR …).

Parece fácil, mas, seguramente, não será assim tão fácil …

Vejamos na perspetiva do empregador:
Pelo salário de 1.000€, o empregador teria de pagar TSU (23,75%, admitindo que não está abrangido por qualquer programa de incentivos), a taxa de comparticipação para o FCT – Fundo Compensação do Trabalho e para o FGCT – Fundo Garantia Compensação do Trabalho (que totalizam 1%), acrescendo o subsídio de almoço por cartão (não incluindo as taxas adicionais que a entidade emitente do cartão debita), tem a obrigatoriedade de proporcionar 40h anuais de formação profissional (não está incluído o valor do serviço de formação por entidade externa, propriamente dita), de ter seguro de Acidentes de Trabalho (admitindo que será cerca de 1% do salário e que pode variar pelas condições de trabalho, perigosidade, exposição a fatores de risco, etc.) e de ter Medicina do Trabalho (em que se admite que o serviço custará 50€/ano/trabalhador, para uma consulta a cada 2 anos).

Não se incluem eventuais fardamentos, equipamentos de proteção individual, equipamentos informáticos e respetivas licenças, nem outros custos indiretos que, pelo facto de ter este trabalhador, tenha de acionar para que esteja a respeitar a regulamentação do sector.

Chegados a este ponto, o empregador terá pago pelo salário de 1.000€ e de um subsídio de refeição de 8€/dia útil, cerca de 1.447€, ou seja, 144,7% do salário ilíquido.

Vejamos, agora, na perspetiva do Estado:
Os impostos devidos (TSU, IRS, FCT e FGCT), quer pelo trabalhador, que pela entidade patronal, são depositados nas respetivas entidades – Segurança Social, Finanças – perfazendo 439,50€. Ainda irá ser cobrado, de forma indireta nos consumos que o trabalhador vai fazendo ao longo do mês, IVA nos alimentos e produtos que constituem o cabaz de compras do trabalhador, na alimentação diária, nos transportes e nos serviços de gás, água, eletricidade, comunicações e TV, e, ainda, IRS/IRC na renda que o trabalhador paga, podendo o valor de quase 470€ elevar-se até cerca de 700€/mês.

Isto corresponde a dizer que o Estado quase que cobra, em impostos diretos e indiretos, o equivalente ao ordenado líquido de um trabalhador …

Na verdade, não estamos perante uma situação muito fora da realidade contextual em Portugal: o Estado é um dos maiores “beneficiados” pelo trabalho de alguém.

Será que são os salários que são baixos? Creio que não só. Quanto maior o salário, maiores são os valores que o Estado cobra de IRS, “deglutindo” mais uma parcela do acréscimo de salário que o trabalhador teve. Por outro lado, o nível de consumo desse trabalhador também teria de ser ajustado ao seu novo perfil de receita, o que geraria maior volume de impostos indiretos (em sede de IVA e outros).

Estamos perante uma situação em que os acréscimos de salários podendo ser geradores de maior valor acrescentado, também são geradores de maior volume de impostos cobrados pelo Estado, reservando para si uma parcela significativa dos “ganhos” da economia.

Tudo isto seria até desejável, mas qual a perceção que cada um destes atores tem dos outros?
Para o empregador, ter um trabalhador com um salário mais elevado justifica-se se o valor que daqui resulta, objetivo e subjetivo, é superior; logo, justifica o “investimento” que está a fazer em determinado trabalhador. No entanto, a perceção que tem do Estado é que este levou uma fatia significativa do valor pago e ele, empregador, não obteve as contrapartidas necessárias ou as que esperaria.

Para o trabalhador, ter um salário cada vez maior é o seu desejo natural, pois permitirá chegar a um nível de conforto e de comodidades mais amplo, conseguindo atingir vários patamares dos seus níveis de satisfação. Quer queiramos, quer não, também contribui para o aumento do seu compromisso com a organização. A perceção quanto ao Estado é, muitas vezes, ainda pior do que a perceção da entidade empregadora: não obteve nada de contrapartidas, a Justiça, a Saúde e a Educação, não melhoraram nada de significativo, degradando-se a cada dia que passa, a Segurança nem sempre é garantida, os apoios e subsídios para a si e família são escassos e nem sempre atribuídos a quem deles necessita (provavelmente, com aquele ordenado nem sequer teria direito) … A perceção é, nitidamente, pouco efetiva do papel do Estado e enegrecida por diversos fatores (pontuais ou não).

O Estado tem uma perspetiva diferente: conseguiu receber cerca de 50% do salário ilíquido mensal só com impostos diretos sobre o trabalho, tem a expetativa de arrecadar mais através de impostos indiretos e taxas. Pode utilizar para a redistribuição da riqueza, através do emprego na administração pública, por exemplo, ou através de subsídios e outros mecanismos, mas nem a eficácia, nem a eficiência na utilização destes recursos é garantida.

O Estado pode ainda utilizar uma parte dos seus recursos para fomentar o emprego, o que gerará um aumento da sua receita, quer direta, quer indireta.

Mas, para que o “resto do mundo” perceba que o Estado está a utilizar bem os seus recursos (que, na verdade, são os recursos que todos nós proporcionamos), tem de haver medidas concretas e que estimulem a atividade económica e a geração de receitas.

Como não existe essa perceção, chegamos a uma situação em que consideramos que o Estado é uma figura “parasita”, que só destrói riqueza … Mas, não o é. Promove o emprego, criando medidas do lado do empregador, tais como a redução de TSU, de IRC, incentivos ao investimento e programas específicos de formação e emprego, estes últimos que visam também dotar o trabalhador de competências necessárias para a sua adaptação ao mercado de trabalho; cria medidas de proteção do trabalhador e da sua família, etc. Cria emprego, em parceria com o investimento privado, gera conhecimento nas escolas e universidades, cria e gere o ordenamento jurídico … enfim, existem várias áreas onde o Estado intervém para melhoria das condições de vida de toda a população.

Resumindo, o Estado tem alguns papéis que são importantes: regular os serviços, estimular o emprego e a economia, promover a educação, saúde e a justiça, proteger a população mais desfavorecida, proceder à redistribuição da riqueza, garantir a segurança de pessoas e bens, e tudo isto só é possível com o suporte dado pelos impostos e taxas que arrecada de todos nós.

Mas, não fica nada fácil justificar a diferença que existe entre o que deve fazer e aquilo que é percebido por todos nós sobre o que faz efetivamente. Como perceber que para um empregador pagar um salário a um trabalhador, o Estado retenha diretamente quase 30%, e em que o sobrante de cerca de 70%, além de suscitar todo um ciclo económico, em várias áreas e setores, irá gerar mais impostos para o Estado … Ou seja, quem parte e reparte fica com a melhor parte …