Eu queria estudar, mas o meu chefe não deixou …

O Afonso era um jovem com 22 anos que procurava emprego e melhores condições de vida para ele e para a Ana, recentemente casados; na aldeia em que viviam não conseguiam arranjar emprego que desse para sobreviver.

Além disso, o Afonso queria ir estudar e o orçamento que tinham era muito reduzido, apesar da ajuda que os respetivos pais lhes davam. A Ana não era tão ambiciosa e queria antes ter filhos, mas as dificuldades para ter e criar filhos eram elevadas, impossibilitando esse sonho.

Assim, logo que o Afonso soube que estava quase a entrar numa importante empresa de automóveis, após várias fases de um anúncio que tinha respondido para a cidade de Braga, recebe a carta com a proposta de vencimento final e tenta mudar-se para a cidade, procurando casa e tratando de tudo para que a Ana fosse com ele.

Começou a trabalhar na área fabril, mas os seus chefes rapidamente perceberam que poderia ser uma mais-valia na área da contabilidade, e como queria fazer o curso de Contabilidade, para ele seria uma ótima aposta para uma futura carreira.

Desta forma, o Afonso passou para a área da Contabilidade. O seu chefe, o António, era uma pessoa de meia-idade, sem curso superior, mas com muita experiência profissional, era brincalhão, tinha sempre anedotas prontas a propósito de qualquer coisa, e começou por confiar bastante no Afonso. Este, satisfeito pela confiança que estava a ganhar e pelo trabalho que estava a desempenhar, inscreveu-se no curso de Contabilidade e, certo dia, chegou junto do António e transmitiu-lhe que estava inscrito no curso que tanto desejava fazer, mas para isso precisava de ter o estatuto de trabalhador-estudante.

O António, que até ali, nunca se tinha manifestado quando o Afonso falava em fazer um curso superior, mudou de comportamento. A partir desse dia, o Afonso foi inundado de faturas para classificar, de recibos para arquivar, de inventários, de lançamentos na contabilidade analítica e outras operações, que lhe retiravam grande parte da vontade de sair do trabalho às 17h para fazer o percurso até à faculdade para assistir às aulas.

Algumas vezes, faltava às aulas e pedia aos colegas que lhe dessem os apontamentos sobre as matérias tratadas; outras, ia para as aulas, atrasado, mas tentava recuperar o tempo perdido nos intervalos com os colegas a inteirar-se do que se tinha passado, que matéria tinha sido discutida, etc. Raramente, chegava a horas ao curso …

Por sua vez, o António continuava a assoberbar o Afonso com trabalho e quando este não acabava o trabalho naquele dia, ele chegava à secretária e retirava-lhe o trabalho, barafustando porque ele, Afonso, não ia nunca conseguir ser um bom trabalhador porque só queria era estar dispensado do trabalho mais cedo para “ir à sua vida” …

O Afonso tentou falar com ele, sem resultado. De brincalhão, passava a resmungão, dizendo que ele não tinha responsabilidade nenhuma, que o trabalho estava ali para ser feito e ele só queria era ir-se embora para a escola, que não era sequer obediente, etc.

Sem conseguir ultrapassar este obstáculo, nem ter uma conversa que pudesse ser construtiva, o Afonso foi falar com o Rogério (Diretor de Recursos Humanos) sobre o seu caso e pediu para o colocarem de novo na área fabril, que seria sempre mais bem recebido e atendido nos seus desejos de ser trabalhador-estudante, do que na área da Contabilidade.

Este percebeu logo o que se estava a passar, também ele tinha sido trabalhador-estudante, há alguns anos e percebia os sentimentos de um e do outro.

Respondeu ao Afonso que não aceitava, não o deixaria ir de novo para a área fabril, mas que o iria colocar na Tesouraria, uma vez que estavam a iniciar um processo de admissão de um técnico administrativo para esta área. Aqui, poderia fazer o seu trabalho e, simultaneamente, estudar. Disse-lhe “A única condição que coloco é que vais ter de estudar durante toda a tua vida, não é só no curso …” que o Afonso, sorridente, anuiu.

Entretanto, o Rogério chamou o António ao seu gabinete e perguntou-lhe porque tinha agido daquela maneira com o Afonso. O António referiu-lhe que ele não acabava o trabalho que lhe dava, que o deixava incompleto para terminar no dia seguinte, que estava muito distraído e sempre a pensar nos estudos, que aproveitava qualquer intervalo para estudar em vez de acabar o seu trabalho, que isso o deixava furioso porque ele deveria era dar prioridade ao trabalho e que o curso seria muito difícil para o Afonso …

Aí, o Rogério disse-lhe: “Mas, António, o Afonso tem esta prioridade que é importante para ele e para a família dele, quando conseguir acabar o curso não vai tirar o teu lugar, nem o meu, irá criar o seu próprio lugar dentro da organização ou até mesmo noutra, se não lhe conseguirmos dar as condições que ele merece, se não formos suficientemente atrativos para ele … o teu filho não está a estudar? Está. E queres que alguém o limite, não lhe dando a oportunidade de aproveitar o esforço que estás a fazer na sua educação? Não queres, certo? Então, dá uma oportunidade ao Afonso, porque ele, com toda a certeza e se bem o conheço, irá agradecer-te no futuro e irá respeitar-te a ti e ao profissional que és.”.

Muitas vezes, o RH depara-se com situações destas em que é preciso desmontar os preconceitos de algumas pessoas que entendem que o esforço e o estudo, a ambição, de uns se converte, mais tarde ou mais cedo, numa criação de situações de desconforto para eles. Também precisa de ver mais além e pensar se a cultura da empresa é abalada ou não pelas motivações e ambições dos seus colaboradores, se existe outra solução que seja ganhadora para ambos os lados (empresa e colaborador) e não ter receio de a implementar.

Neste momento em que a atratividade das empresas é um fator decisivo para a retenção de conhecimento e de talento, em que mais do que se pedir ao colaborador para “vestir a camisola” se pretende que ele próprio “queira vestir a camisola”, em que o papel estratégico do RH é maior do que alguma vez foi, o RH tem de estar atento e aberto a todas as oportunidades que se colocam na sua mesa de trabalho e não afastar nenhuma delas, ajudando a que todos ganhem.