O capataz e as 130 luas de Joana – Gestão de recursos humanos à portuguesa

A gestão de recursos humanos à portuguesa, aquela feita pelo dono e fundador da organização, tem, normalmente, pouco foco nas pessoas. No entanto, há algumas exceções que confirmam a regra; poucas, mas há. O capataz e as 130 luas de Joana falam desta temática. Façamos uma analepse até à fundação da empresa em questão.

Gestão de recursos humanos à portuguesa – João e a fundação

A ServiCorp é uma grande empresa na área dos serviços. João Silva, dono e CEO da organização, fundou-a há 35 anos, na Maia, em sociedade com um ex-colega da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto; a quem acabou por comprar a sua quota, volvidos pouco mais de 12 meses, por terem visões diametralmente opostas relativamente ao futuro do negócio.

Gestão de recursos humanos à portuguesa – Francisco

Francisco, primo direito de João, era o diretor de operações da organização. Foi um dos primeiros funcionários da empresa, no ano da sua fundação, em 1998. Cresceu na Rebordosa, perto de Paços de Ferreira, onde a família tinha uma pequena quinta de produção de frutas e legumes, que vendia pelos mercados da região. Francisco estudava e ajudava a família na quinta e, ao fim de semana, também no mercado.

Aos 19 anos, com o 10º ano incompleto, foi trabalhar numa pequena fábrica de móveis de um vizinho (mais uma oficina), onde foi aprendendo o ofício, onde ficou cerca de cinco anos. Num batizado da família, é convidado por João a ir trabalhar para a recém-fundada ServiCorp, como jardineiro. Francisco, que sempre gostou mais da terra que da madeira, aceitou o convite na hora.

Tinha uma personalidade forte e, embora não fosse propriamente culto, era indiscutivelmente inteligente e pragmático. O facto de ser primo do patrão também ajudava. Passados quatro meses já liderava uma equipa de jardineiros e, em menos de dois anos, passou a coordenar toda a área da jardinagem e das limpezas.

Ao longo dos anos a ServiCorp acabou por juntar novos serviços ao seu leque de serviços, tais como lavandaria para hotelaria e restauração, manutenção de edifícios, máquinas de vending, segurança privada, limpezas industriais, entre vários outros. Em 2015, já faturava mais de € 200 milhões /ano. Foi também nesta altura que Francisco foi nomeado diretor de operações e passou a reunir com o board.

Gestão de recursos humanos à portuguesa – Joana e o «namoro»

Joana, tem duas licenciaturas –Arquitetura e Ciências da Comunicação – e duas pós-graduações em Marketing Digital. Geria, com uma sócia, uma pequena agência de comunicação e marketing, e tinham dois colaboradores recém-licenciados. O negócio dava para pagar as despesas, sobrar alguma coisa e ter tempo de lazer.

João Silva conheceu Joana no processo de rebranding da empresa, em 2015, ficando impressionado com as suas competências profissionais; mas também com a sua presença forte e agradável. Para além de uma excelente profissional, era inteligente, culta e muito elegante. Convidou-a para trabalhar na empresa, mas ela recusou.

João passou cerca de dois anos a tentar convencer Joana a aceitar um lugar de Diretora de Comunicação e Marketing. Recorreu várias vezes aos seus serviços, muitas vezes até sem precisar, apenas para insistir no convite. Inventava almoços de trabalho, insistiu numa visita guiada à nova sede da empresa, em Matosinhos, aquando da inauguração, entre várias outras abordagens.

Joana residia em Matosinhos, o que serviu para uma nova investida de João. Já viste, ficas a trabalhar a menos de 10 minutos de casa? Podes montar o departamento à tua vontade. Geres o teu orçamento à tua maneira. Depois, para além do salário, eu vou-te pagando prémios trimestrais, para ficares mais confortável.

Entre o início de 2015 e o final de 2016 as propostas e as investidas foram mais que muitas. Joana sempre achou que não estava alinhada com aquela cultura. Mas, em novembro de 2016, João lançou a cartada final e ofereceu-lhe um salário elevado, prémios de desempenho, um carro topo de gama e 27 dias de férias por ano. Condição: iniciar no início de 2017.

Gestão de recursos humanos à portuguesa – Joana e o «casamento»

No seu primeiro dia Joana foi recolhida em casa, por um colaborador da empresa, ao volante do seu novo carro. Tinha, inclusivamente, lugar reservado junto à administração. Foi recebida por João, à porta, que a levou a um amplo e moderno gabinete, totalmente equipado. Almoçaram juntos e falaram dos objetivos mais prementes.

O primeiro ano foi relativamente suave. Construiu o departamento, construiu uma pequena equipa de seis pessoas, reposicionou a marca e foi consolidando o posicionamento através de várias ações online e offline. Redefiniu parcerias e processos e pôs o departamento a funcionar. Entretanto, percebeu os tais prémios teimavam em não vir e que os dias adicionais de férias só seriam devidos após um ano na organização. Mas isso não seria um problema.

2018 foi um ano muito positivo; a empresa obteve bons resultados e Joana recebeu alguns prémios, mas não o que lhe havia sido prometido. João decidia o que pagava e quando pagava (inclusivamente, se pagava). Entretanto, com as coisas organizadas e com o reforço da posição de Francisco, João decidiu que Joana lhe passaria a reportar. A relação entre Francisco e Joana nunca foi a melhor. Eram pessoas muito diferentes, com estruturas e valores distintos.

Gestão de recursos humanos à portuguesa – o princípio do fim

A autonomia que tinha foi-lhe sendo retirada, ao ponto de não poder comprar um caderno sem autorização de Francisco. Passou a ter de escrever toda a comunicação com Francisco, para provar o que havia ficado decidido. Deixou de ter vida, trabalhando diariamente de manhã à noite, com interferências constantes no seu trabalho. O excesso de trabalho e as limitações impostas passaram a ter impacto na qualidade do seu trabalho; o que depois lhe era cobrado.Francisco era um verdadeiro capataz de João. Se era preciso despedir alguém, ele tratava. Se era preciso que alguém se despedisse, ele assediava. Se era preciso apertar com alguém, ele apertava. Nunca o verbalizou, mas gostava do poder e, particularmente, de ser temido. Adorava ouvir-se e, sempre que tinha de «orientar», rejubilava com cada uma das palavras que proferia durante uma ou duas horas. Era misógino, xenófobo e homofóbico. Tinha um ego imenso e nenhuma consciência das suas limitações.

Joana não conseguia conceber que pudesse existir alguém assim. Por vezes pensava que aquilo devia fazer parte de uma qualquer experiência social e que, a qualquer momento, iriam aparecer os investigadores, vestidos de branco, a agradecer a participação no estudo. Para João, estava tudo bem. Francisco fazia o seu papel, enquanto ele tomava as decisões importantes. Os resultados apareciam, e isso bastava.

Joana não se identificava com nada daquilo. Reportava o máximo por e-mail e procurava refugiar-se no trabalho e no desenvolvimento da equipa, por quem se sentia responsável. Francisco nunca lhe reconheceu valor e nunca percebeu a necessidade daquele departamento. Nunca tiveram aquela “gente do marketing” e as coisas sempre andaram.

Gestão de recursos humanos à portuguesa – o «divórcio»

O final do ano de 2018 foi muito conturbado. O principal cliente da ServiCorp – uma grande petrolífera angolana – devido à falta de divisas, decidiu que todos os pagamentos a fornecedores teriam de passar a ser efetuados em kuanzas, o que impossibilitou a continuidade da parceria.

Houve um despedimento coletivo, onde foram despedidos cerca de 15% dos colaboradores da empresa. Alguns dos colaboradores com salários mais elevados passaram estrategicamente a reportar ao Francisco, na tentativa de que se despedissem. Houve uma supressão de tudo aquilo que eram prémios e benefícios, o que levou a que muitas pessoas perdessem metade do seu salário. Joana não foi exceção, mas, ainda assim, era um dos casos menos graves.

O clima na organização passou a ser de medo. Por onde Francisco passava, deixava um rasto de terror. Ele gritava, ameaçava, derrubava e/ou atirava objetos às paredes. Cada vez que alguém era chamado ao departamento de recursos humanos, ou ao gabinete do Francisco, ficava tudo em pânico: «é mais um despedimento!».

Joana, que já havia perdido metade da sua equipa, decidiu que não era ali que queria estar, nem queria compactuar com nada daquilo. Enviou um e-mail a Francisco e apresentou a sua carta de demissão – no que ainda restava do departamento de recursos humanos. Recebeu a informação que teria de usar os dias de férias não gozados e que estava dispensada do restante pré-aviso legal. Usou esse tempo para criar uma microempresa na área do design e do marketing digital. Aproveitou o salto digital motivado pela pandemia e tem tido imenso sucesso. E é tão feliz longe de gritos, das pressões e das ameaças. Voltou a ter vida social e janta todos os dias com a família.

Gestão de recursos humanos à portuguesa – Epílogo

Vários estudos têm vindo a apontar a falta de formação das chefias como o principal motivo de atraso da economia portuguesa. O Observatório das Desigualdades, por exemplo, tem vindo a medir este flagelo e conclui que mais de um terço dos gestores, diretores e dirigentes têm apenas a escolaridade básica (dados de 2018). Os baixos índices de qualificação escolar explicam o facto de, apesar de os portugueses trabalharem mais horas, o valor acrescentado e a produtividade serem mais baixos. Há que apostar na formação das pessoas e em efetivas políticas de gestão para podermos começar a inverter estes números. Só assim podemos conseguir que a gestão de recursos à portuguesa possa ser sinónimo de produtividade e valor acrescentado.


Notas:
– Os factos relatados são reais, porém adaptados, e oram retirados de várias estórias recolhidas aos longo dos anos no mercado de trabalho em Portugal.
– Todos os nomes indicados são fictícios.