QUERO CONTRATAR O JOÃO

O Bastos era um Eng.º que prestava a sua atividade na fábrica de relógios “HORA CERTA”, prestigiada marca no panorama nacional e com alguma projeção no mercado externo, sendo considerado por todos como um trabalhador afável e prestável, com um excelente desempenho e já bastante antigo na fábrica, tendo implementado muitos dos avanços na sua área de atuação.

No entanto, o Silva, seu patrão, pretendia contratar um Eng.º com uma formação mais recente e que lhe dava perspetivas de poder vir a desenvolver ainda mais a área da produção, o João; este, estava a procurar uma oportunidade no mercado de trabalho e tinha ligações pessoais ao Silva, através de amigos comuns.

Certo dia, o Silva arquitetou uma situação que lhe permitisse o despedimento do Bastos, com justa causa. Se bem a pensou, melhor colocou em prática. Como detinha a chave mestra dos cacifos, um dia foi ao cacifo do Bastos e colocou lá um conjunto de desenhos que estavam na área de I&D para novos processos de fabrico de relógios para marcação de ponto, uma área que a HORA CERTA estava a desenvolver, com uma tecnologia que associava cartões de plástico com a identificação única de cada empregado associado a um código QR e leitores respetivos.

A Helena, empregada da limpeza, que estava na divisão adjacente à dos cacifos, viu um movimento estranho e espreitou, tendo visto o Silva sair de lá, mas, como era o patrão e não viu mais nada, não se apercebeu do que seria e nem valorizou a situação.

No dia seguinte, o Silva dá o alerta de que tinham desaparecido os referidos desenhos e quem os tinha tirado teria de ser alguém que tinha acesso à sala de I&D, um lote de muito poucos trabalhadores. Começou o processo de “revista” a todos, aos seus pertences e, claro está, aos respetivos cacifos.

Para admiração de todos, os desenhos são encontrados no cacifo do Bastos, que, incrédulo, não fazia a mínima ideia de como lá tinham ido parar, afirmando que não tinha sido ele e que, alguém que desconhecia, lá os teriam colocado.

Chamado o DRH (Juvenal) para iniciar o processo de inquérito e os trâmites necessários para o procedimento disciplinar com vista ao despedimento com justa causa, este iniciou desde logo todo o processo.

Ao fazer a audiência do Bastos tentou perceber como lá tinham ido parar os desenhos e tentou perceber “nas entrelinhas” da conversa se haveria algum mal-estar dele que o pudesse levar a ter uma atitude dessas, se haveria algum problema pessoal ou familiar que estivesse na base deste comportamento. Não conseguiu descortinar nada.

Ao fazer a audiência ao seu patrão, o Silva disse que desconfiava já desde há algum tempo que houvesse algo na vida do Bastos que estivesse a condicionar a sua atividade e que contribuísse para justificar o seu comportamento.

Procurou, então, junto de colegas do Bastos, subordinados e pares, que confirmassem esta situação, não tendo havido nada que pudesse retirar das várias audiências que justificasse o comportamento e semelhante atitude do Bastos.

Ao fazer o relatório final do processo disciplinar e não tendo qualquer evidência de que este ato tivesse sido perpetrado pelo Bastos, inclinava-se para aplicar uma pequena suspensão, baseada quase exclusivamente no depoimento apresentado pelo seu patrão, não tendo conseguido confirmar nada, com colegas e subordinados, que justificasse aquela ação. Estava quase de saída da fábrica, já tarde, foi apanhado pela Helena que sabia da história que circulava nos corredores e refeitório da fábrica, ao que ela contou que se recordava de, num dia, ter visto o Silva sair da sala dos cacifos, mas que não sabia o que ele tinha lá ido fazer.

O Juvenal então percebeu o que se estava a passar … e decidiu não apresentar o relatório final do processo disciplinar no dia seguinte, como tinha combinado com o Silva.

Ao invés, preparou uma sessão com o Silva para lhe falar da eventual vaga que seria deixada pelo Bastos: se já tinha alguma ideia sobre quem estaria habilitado para substituir a vaga, que experiência, conhecimento e saber eram necessários assegurar, que não seria fácil encontrar no mercado de trabalho pessoas com aquele nível de competências e conhecimento, etc.

Claro que percebeu que, na opinião do Silva, o “alvo” seria o João preencher a vaga deixada pelo Bastos.

Então, falou-lhe que não tinha encontrado nada que pudesse justificar a atitude e comportamento de que o Bastos estava a ser acusado, nem na conversa com ele, nem com os colegas, pares e subordinados, sendo uma pessoa de estima e consideração para todos eles, demonstrando que não percebia porque só ele, Silva, o tinha em tão baixa consideração e achava que ele seria capaz de uma atitude destas. O Silva, pressionado, desmascarou-se: “Não vês? Eu quero contratar o João para aquele lugar!”.

O Juvenal referiu a conversa que tinha tido com a Helena e indicou-lhe que iria encerrar o seu relatório disciplinar sem aplicação de qualquer pena para o Bastos, uma vez que não havia qualquer evidência de que aquele ato tinha sido perpetrado por ele. Se o quisesse despedir, teria de encontrar outra forma de o fazer.

Entretanto, algumas horas depois, a Helena foi ameaçada pelo Silva de despedimento se se intrometesse em assuntos que não eram da sua responsabilidade …

O Bastos, após conhecer o resultado do processo de inquérito realizado e porque não se sentia confortável com a falta de confiança que o seu patrão tinha demonstrado ao seu profissionalismo, apresentou uma carta de demissão ao Juvenal.

De seguida, o Juvenal foi ao gabinete do Silva levar a carta de demissão do Bastos e aproveitou para, também, apresentar a sua própria demissão.

Em resumo, a confiança conquistada e fortalecida ao longo de anos de trabalho entre pessoas, acabou por ser desfeita por haver um interesse pessoal e particular de uma delas. Em lugar de se assumir o que se pretendia, de forma clara e objetiva, negociando entre ambos de forma assertiva, optou-se por uma estratégia de colocar os outros em descrédito, através de mentiras e atos forjados, ferindo a dignidade de uma das partes; conseguiu-se, assim, atingir o objetivo pretendido, mas sem chegar a um resultado que poderia ter sido bom para ambas as partes, em que fossem tratadas com o devido respeito.

Esta história passou-se já há alguns anos e num outro setor da nossa economia; é minha convicção de que já não temos patrões com uma educação tão pouco digna e tão rude, quanto o Silva demonstrou nesta história, e com a crescente formação, a sociedade civil tem crescido, tem-se desenvolvido, deixando para trás este tipo de comportamentos e atitudes que não são desejáveis, nem desculpáveis … Assim esperamos, para bem de todos!