Sobre a importância da coerência na comunicação

Nota prévia: usarei, ao longo do texto, a palavra pessoas, e nunca empresas, porque sendo as empresas feitas de pessoas, não me faz sentido falar de entidades, no contexto da reflexão que me proponho fazer.
Feita esta ressalva, avanço no meu ponto.

Seja na esfera pessoal, seja na profissional, uma importante percentagem de pessoas não procura verdadeiramente a coerência entre o que defende, ou diz defender, e aquilo que são as suas atitudes e o seu modo de estar na vida. Por essa razão, assistimos a uma ampla comunicação sobre causas, preocupações, ameaças, princípios, valores e propósitos e uma prática que não os reflecte. Ou seja, há um enorme hiato entre as causas que abraçamos e os comportamentos que realmente demonstramos.
Neste nosso mundo contemporâneo global, ouvimos constantemente vozes em protesto, mas o consumo desenfreado não para de aumentar em todos os segmentos.

Ao nível do mercado, existe o dilema permanente entre satisfazer necessidades de consumo e o cumprimento de valores éticos e sustentáveis, exigidos pelos mesmos consumidores que, tantas vezes, não os praticam nas suas vidas pessoais e profissionais.

Os comportamentos de consumo e os estilos de vida chocam de frente com a consciência ambiental e social, levando-nos a questionar se estamos realmente comprometidos com as causas que dizemos apoiar. É fácil reclamar da poluição enquanto adquirimos produtos que a promovem, mas é difícil agir de forma coerente com os nossos alegados ideais.

Num mundo cada vez mais digital e desligado da realidade física, a relação entre as crianças, os adultos e os ecrãs é também um ponto de reflexão essencial. As crianças são entregues a dispositivos desde tenra idade, enquanto os adultos lutam para equilibrar o tempo gasto nos dispositivos móveis e na vida física, real. No entanto, ouvimos os pais preocupadíssimos com a dependência que os seus filhos têm da tecnologia, os problemas de sono e o défice de atenção, ao mesmo tempo que não lhes dão outro exemplo.

O mesmo padrão pode ser encontrado quando vemos a comoção das pessoas com os jornalistas em greve e em manifestações, mas poucos são os que estão disponíveis para pagar por qualquer conteúdo de informação.

A ascensão da inteligência artificial também suscita questões profundas. Por um lado, promete facilitar as nossas vidas, podendo executar todo o tipo de tarefas rotineiras, mas, ao mesmo tempo, consegue substituir trabalho altamente qualificado como a análise de dados, a realização de cirurgias ou a criação de obras de arte. É minha convicção que a AI não consiga substituir a essência humana naquilo que é a relação que se estabelece entre pessoas num processo de comunicação. A equação que junta a complexidade das nossas emoções com a singularidade das nossas experiências é a matriz da comunicação humana.

A comunicação no sentido lato, que engloba informação, divulgação, promoção e debate de ideias, pode moldar percepções, influenciar decisões e conectar pessoas. No entanto, é frequentemente mal utilizada.
Reclamamos da falta de transparência das marcas, da manipulação das redes sociais e da saturação publicitária, mas muitas vezes não comunicamos de forma autêntica e empática.

As nossas atitudes moldam o mundo em nosso redor, e é essencial lembrar que, num mundo impulsionado pela tecnologia e pelo consumo, a verdadeira eficácia da comunicação, seja em que domínio for, não se limita a transmitir uma mensagem. Essa mensagem requer autenticidade, empatia e acção concreta em prol de um futuro sustentável e humano.

Quando comecei a estudar Relações Públicas e Publicidade, falava-se muito da necessidade de “calçar os sapatos dos consumidores” para conseguir desenvolver produtos, processos e mensagens eficazes. Hoje essa expressão deu lugar à palavra empatia. E a empatia é uma característica essencialmente humana, embora extensível a várias espécies do mundo animal.

A dificuldade reside em sermos empáticos connosco mesmos. Enquanto não conseguirmos aceitar que os nossos sapatos nos provocam desconforto, dificilmente vamos conseguir calçar os sapatos dos outros.
É aqui que volto à questão da coerência. Noutro dia, ouvi alguém dizer, numa conversa sobre política, que a coerência não interessa assim tanto, pois todos somos incoerentes. Concordo e discordo. Concordo que todos somos incoerentes, embora uns mais que outros, mas discordo que isso não tenha importância. Eu posso achar bem determinada ideia ou prática, e não agir sempre em conformidade com ela. Mas posso escolher pronunciar-me apenas sobre questões que subscrevo pelas minhas acções.
Se não separo o lixo, não posso andar a lamentar os baixos níveis de reciclagem no país. E isto é válido para milhares de coisas todos os dias, que também estão na origem dos discursos polarizados. Acredito que o que mais diferencia as pessoas, e as atira para lados opostos da barricada, não são tanto os seus actos, mas antes os seus discursos.

A distância entre o que proclamamos e o que fazemos é por vezes tão grande que só um estado de quase negação nos permite andar de cabeça erguida.

Temos duas hipóteses. Fazer mais. Ou falar menos. Cada comportamento, cada palavra dita e cada momento partilhado contribui para a narrativa global do nosso tempo. E isso é uma grande responsabilidade individual.

PS – Existe um diálogo extraordinário, no filme Ervas Secas (2023), do realizador turco Nuri Bilge Ceylan, em que o paradoxo que refiro é abordado pela personagem Nuray, interpretada pela actriz Merve Dizdar, que recebeu o prémio de Melhor Actriz em Cannes, com este filme. Recomendo o visionamento.