Representar papéis

Os cínicos dizem que os seres humanos estão na terra para representar apenas dois papéis: alimentar-se e reproduzir-se. E que todas as demais funções desempenhadas por eles seriam sublimações para satisfazer estas duas únicas tarefas que lhes estariam reservadas, assim como a todos os demais animais do planeta. Seguramente a maioria dos humanos não concorda com tal descrição minimalista de suas passagens pela terra e se atribui outros papéis a serem representados a contribuir para sua satisfação.

Quais seriam então estes papéis?

Os papéis representados por pessoas são formas de funcionamento que elas assumem no momento em que reagem a uma situação específica na qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos. Cada papel social compõe-se de um conjunto de normas, expectativas, direitos e comportamentos que as pessoas assumem e cumprem. Por exemplo, o papel do gestor nas organizações pressupõe planejamento, definição de metas, alocação de recursos humanos, tecnológicos, financeiros e de infraestrutura, entre outros, para atingir os objetivos da organização.

Os papéis sociais, profissionais e organizacionais são um conjunto de funções desempenhadas por pessoas a fim de realizar as atividades que compõem o papel executado. O papel pode ser considerado como uma unidade da cultura e cada cultura se caracteriza por uma série de papéis que, se espera, sejam cumpridos e respeitados por todos os membros na sociedade e nas organizações. Portanto, isto se aplica também à cultura organizacional. Por isso deve-se destacar que as pessoas cumprem seus papéis na sociedade e nas organizações e nelas executam os processos que seus papéis determinam e que elas entendem razoáveis de serem feitos.

Assim, todas as pessoas exercem um infindável número de papéis ao longo de suas vidas. Papéis de pais, cônjuges, filhos, irmãos, tios, primos, avós, netos, primos, vizinhos, amigos, patrões, empregados e assim por diante. Papéis para os quais não, necessariamente foram preparados. O fazem obedecendo ao senso comum, aprendido por meio da rede mundial de personalidades que, dependendo de culturas nacionais e de usos e costumes locais, são exercidos de maneira parecida em todo o mundo. Fazem aquilo que suas personas indicam como o mais apropriado. São condutas aprendidas pela personalidade de cada um. Não se preparam para exercê-los; simplesmente, o fazem.

A teoria dos papéis diz que os indivíduos executam suas funções em conformidade com as normas vigentes .

A teoria pressupõe que as pessoas são essencialmente conformistas e tendem a viver de acordo com as normas que acompanham os seus papéis. Em contraposição, este artigo explora os papéis que as pessoas são desafiadas a desempenhar em suas vidas de relação, independentemente das origens determinísticas deles.

A teoria dos papéis diz que para mudar o comportamento das pessoas é necessário mudar os papéis que elas desempenham rotineiramente na sociedade. Em março de 2020, quando o primeiro surto de Covid atingiu Nova York, Maria Karas, cardiologista que dirige a UTI cardíaca do NewYork-Presbyterian Hospital (NYPH)-Weill Cornell, ajudou a coordenar o esforço do hospital no combate à epidemia. Embora reconheça que a equipe enfrentou desafios pessoais, Karas fala, quase com saudade, desses primeiros meses angustiantes. Apesar do medo e incertezas, os profissionais de saúde se uniram à causa, assumindo tarefas muito além de seus papéis habituais. Eles abraçaram as oportunidades de aprender e compartilhar. O mais impressionante, para Karas, foi o senso quase palpável de significado e propósito à medida que as pessoas se dedicavam a mitigar a crise. “As pessoas tinham muito orgulho de seu trabalho”, disse ela. “Foi um momento muito especial.” Podia-se notar que havia entre eles um orgulho muito grande do trabalho que realizavam e que vivenciavam momentos especiais ao desempenhar seus papéis. Havia uma mudança de comportamento em relação às suas atividades rotineiras diárias. Pode-se aferir que, como todos se identificavam com a causa, se estabeleceu entre eles uma rede de comunicação inconsciente que os empenhava em direção à desempenhar seus papéis de maneira convergente e harmônica, muito mais do que em seus empregos regulares. Esta rede fazia as vezes de uma liderança compartilhada que, por consenso, se autorregulava e dirigia o grupo para seu destino. A força do grupo era mais forte do que qualquer liderança individual.

Quando o potencial do grupo é atingido, a “mente coletiva” proporciona a conexão com o inconsciente dos participantes. Todos do grupo têm a possibilidade de acessar e de adquirir conhecimento do inconsciente do outro. Esse poder do coletivo estimula a mente num grau superior de vibração, como se passasse a ter uma imaginação mais viva e criativa, um sexto sentido.

O arbítrio individual, é substituído por aquele entranhado no inconsciente coletivo do grupo. O grupo sabe para onde se dirigir e, quando chega ao seu destino, todos sabem que alcançaram seus objetivos, porque a força inconsciente do conjunto os conduziu.

Parece ser esse o caminho para as organizações trilharem em busca de maior engajamento e comprometimento das pessoas com suas atividades, proporcionando-lhes mais satisfação e realização pessoal. Não se trata de fenômeno isolado, mas parte de uma proposta abrangente que pressupõe mudanças radicais na estrutura de poder das organizações, em direção a uma liderança compartilhada visando maior transparência nas ações e desenvolvimento de confiança ampla entre todos os atores nela atuantes.

Neste ambiente as pessoas poderão exercer seus papéis baseadas naquilo que conhecem de si próprias, na sua individualidade e na forma como podem participar e contribuir com o grupo. E, então, pode-se perguntar qual o grau de liberdade que o arbítrio pessoal pode alcançar nessa teia de interdependências? A resposta a essa questão não é tão importante quanto a importância de se colocar esse tema em questão.

*Este artigo está baseado no capítulo III, do livro “Como integrar esforços coletivos – para entender o ser humano na sua ação conjunta”, organizado pelo autor

(1) Moreno, J.L., Psicodrama, Editora Cultrix, São Paulo,1983
(2) Kristie L., What Is the Role Theory in Organizational Leadership? Disponível em: http://smallbusiness.chron.com/role-theory-organizational-leadership-4958.html.
(3) 35. Rosenbaum, L.Peers, Professionalism, and Improvement — Reframing the Quality Question, N Engl J Med,May 12, 2022 https://www.nejm.org/ DOI: 10.1056/NEJMms2200978