… E o populismo agradece! Os Votos do Protesto e da Desconfiança

Depois de uma investigação judicial que atingiu o Primeiro-Ministro (PM), levou à demissão do Governo, à dissolução da Assembleia da República e à marcação de novas eleições, aquilo de que menos precisávamos era de uma crise que afectasse a credibilidade do principal garante e estabilizador da democracia: o Presidente da República (PR).

Vamos atravessar tempos complexos que exigem o uso inteligente dos poderes, compromissos difíceis e capacidade de decisão, e haverá sempre os que aplaudem e os que ficam frustrados. É provável que os próximos resultados eleitorais reforcem os extremos do espectro político, enfraqueçam o centro e ditem uma solução de governação que exige acordos partidários. O papel do PR ganha maior centralidade num contexto de crise em que é necessário garantir o cumprimento da constituição, a governabilidade do país e estabilidade política para se concretizar os projectos de investimento que estão em curso. A confiança na instituição presidencial é mais importante do que nunca.

É precisamente esta confiança que pode ter ficado abalada com o caso agora trazido a público das gêmeas luso-brasileiras tratadas no SNS. Como é hábito, instalou-se a confusão com revelações públicas a conta-gotas, depoimentos contraditórios, justificações absurdas, os despropósitos de um Director de Serviços hospitalares, e o recurso de vários protagonistas aos álibis do costume: não se recordam, só falam em sede própria e esperaram o tempo da justiça. Tudo isto aumenta o ruído, polariza as opiniões, alimenta a indignação e lesa a dignidade da figura presidencial.

O circuito que o processo fez nos órgãos oficiais até as gémeas receberem tratamento e as responsabilidades dos vários intervenientes estão a ser apurados em três inquéritos. Entretanto, o assunto desceu e as atenções estão agora centradas na legalidade da intervenção do Secretário de Estado da Saúde, junto do hospital, para agilizar a consulta médica. Seja como for, uma coisa é certa e clara: Nuno Rebelo de Sousa, filho do PR, “meteu uma cunha” ao pai, com o intuito de beneficiar pessoas amigas. É esta a origem da questão.

A “cunha” tem raízes profundas na sociedade portuguesa

“Meter uma cunha” é a expressão popular que designa uma prática culturalmente enraizada em algumas sociedades, que consiste em usar os contactos pessoais para pedir a outra pessoa que utilize a sua influência ou capacidade de decisão, com o objectivo de obter um benefício para si ou para terceiros.
Esta acção envolve dois actores com papéis diferentes mas complementares. O que faz o pedido de favorecimento sabe que pretende fruir de um benefício que o coloca numa situação de vantagem em relação aos outros, provocando uma situação de desigualdade de tratamento. O que aceita conceder a vantagem está a abusar do poder utilizando-o de forma indevida para privilegiar os interesses de uns, em prejuízo dos legítimos interesses de outros. Quando o abuso do poder é em benefício de familiares ou próximos, estamos perante o que se designa de nepotismo.

O recente estudo de Ribeiro-Bidaoui, Anatomia da Cunha Portuguesa, dá um retrato sociocultural muitos completo e fundamentado deste fenómeno, da sua funcionalidade e dos prejuízo para a sociedade. A “cunha” e o compadrio não são práticas exclusivas dos portugueses, mas atravessaram a revolução liberal, a monarquia constitucional, a primeira república, a ditadura do Estado Novo e continuam presentes no Portugal democrático. São práticas correntes, tratadas com tolerância bem expressa na pergunta “quem é que nunca meteu uma cunha?”.

A “cunha” tem raízes profundas no nosso comportamento colectivo. É um traço cultural relacionado com as três dimensões que descrevem a sociedade portuguesa, no modelo proposto por Geert Hofstede: elevada distância ao poder, colectivismo e aversão à incerteza.

Embora a distância ao poder tenha diminuído nas últimas décadas, sobretudo com as gerações mais jovens, permanece a tendência, na sociedade portuguesa, para aceitar (quase sempre de forma pouco consciente) que o poder está desigualmente distribuído e que há hierarquias sociais bem definidas, com base na riqueza, no estatuto ou na origem de família. Na sociedade, como nas organizações, as desigualdades sociais, as hierarquias de poder e as diferenças de estatuto são vistas como parte integrante da ordem social e tendem a não ser contestadas. O poder está centrado no topo e as pessoas que o exercem são tratadas com distância, reverência e até submissão.

Esta dimensão cultural tem três consequências. A comunicação ao longo das hierarquias é lenta e sujeita a adulterações, e as responsabilidades são sempre atribuíveis aos decisores do nível acima, enquanto estes tentam atribuí-las ao desempenho dos níveis inferiores. As diferenças de poder entre a base e o topo da hierarquia fazem com que, quem está no topo, tenda a proteger algumas pessoas na base como forma de obter favores pessoais e clientelismos, ao mesmo tempo que, quem ocupa posições inferiores na hierarquia, procura a proximidade e a protecção dos que têm mais poder.

A elevada distância ao poder ajuda a explicar por que razão as pessoas com menos poder se sevem dos relacionamentos pessoais com pessoas mais bem posicionadas, para obter vantagens. A “cunha” é uma forma de utilizar o poder dos mais influentes em seu benefício, obtendo uma vantagem injusta sobre aqueles que não dispõem de contactos pessoais para ter benefício idêntico. A “cunha” é uma estratégia adoptada por aqueles que não têm poder, mas têm acesso a quem o tem, para alcançarem os seus objectivos através de um tratamento de favor.

Também as sociedades colectivistas, por oposição às individualistas, estão mais expostas aos fenómenos de corrupção. A “cunha” reflecte o colectivismo que caracteriza a sociedade portuguesa. Nestas sociedades domina a lealdade aos grupos de pertença, sobre a independência individual. As pessoas devem fazer uma discriminação positiva em função dos laços de família, de amizade, de vizinhança, ou de interesses corporativos, o que leva a decisões que favorecem os interesses privados ou dos grupos de pertença, em detrimento do interesse colectivo.

Estas sociedades também cultivam as relações informais, a reciprocidade e a troca de favores como uma obrigação social, o que explica que os fenómenos de favorecimento das pessoas e grupos mais próximos estejam relativamente normalizados, chegando a ser socialmente condenado quem não favoreça familiares ou amigos próximos, estando em posição de poder fazê-lo. Por seu lado, o “facilitador” pode sentir-se “moralmente obrigado” a exercer o seu poder de influência em favor do outro, pela relação familiar ou de amizade que tem com ele, ou pela obrigação de retribuir favores que recebeu.

Apesar de serem práticas frequentes, toleradas e até aconselhadas às pessoas mais próximas, são fortemente condenadas em abstracto, quando beneficiam estranhos ou prejudicam os próprios. A prática, consagrada na linguagem comum, das “cunhas”, dos “pedidos”, das “recomendações”, dos “jeitinhos”, dos “conhecimentos” e dos “favores” é típica desta dimensão cultural.

A evitação da incerteza também ajuda a explicar a prática da “cunha”. As sociedades com maior índice de evitação da incerteza têm tendência para controlar o imprevisto, limitar os riscos, rejeitar o desconhecido e evitar situações caóticas. São pouco tolerantes à imprevisibilidade do futuro e não confiam na autonomia individual para se tomar as decisões. O sentimento de segurança é central na motivação das pessoas. Por isso, desenvolvem crenças e códigos de conduta numerosos, detalhados e rígidos, e tendem a adoptar estruturas pesadas e complexas.

A “cunha” aparece também como uma estratégia para lidar com a lentidão e a burocracia que caracterizam as organizações. É uma forma de desbloquear decisões, agilizar processos ou conseguir soluções customizadas, o que faz muitas pessoas avaliarem a “cunha” como uma prática normal e até necessária para lidar com as barreiras formais e a opacidade da administração pública. “Ter conhecimentos” é tido como a chave para resolver muitas situações do dia-a-dia e até para ter sucesso na vida.

Foi esta prática culturalmente enraizada que ocorreu entre o PR e o filho, no caso das gémeas. Uma análise mais detalhada dos factos parece indicar que houve uma atitude imprópria do filho e uma gestão pouco prudente do caso por parte do PR.

O homem que foi a causa da polémica que colocou o PR numa situação delicada é licenciado em Economia, tem uma longa carreira em multinacionais, trabalhou no Brasil e regressou a Portugal ocupando actualmente o lugar de Director de Marketing e Comunicação, da EDP Brasil. Trata-se, portanto, de alguém que é capaz de avaliar as responsabilidades da função presidencial, a natureza do acto que praticou e as suas implicações políticas, jurídicas, éticas e mediáticas.

Nuno Rebelo de Sousa aproveitou a relação familiar próxima para usar a influência da primeira figura do Estado no sentido de conseguir um tratamento de favor a pessoas amigas, numa área particularmente sensível: a saúde. É difícil admitir que o próprio não tivesse a noção da forte censura social que esta iniciativa teria se fosse revelada. A atitude de Nuno Rebelo de Sousa passou sem qualquer comentário, como se fosse uma prática normal, concentrando-se a atenção pública na forma como o PR geriu o caso e agora no papel do Secretário de Estado da Saúde, quando, em boa verdade, lhe cabe a responsabilidade de ter sido a causa, com a iniciativa que tomou.

O caso das gémeas ocorreu há quatro anos, mas veio a público na pior altura: numa conjuntura de crise económica, como o SNS a não responder às necessidades básicas do cidadão comum e na sequência de uma crise política gerada por suspeitas de corrupção no governo. A descoberta de que se usou uma relação de proximidade familiar para mover a influência do órgão máximo do estado, no sentido de obter um tratamento de favor num acto médico, só podia ter um efeito explosivo na opinião pública.

O PR recebe muitas petições de cidadãos a que dá o devido encaminhamento, mas neste caso não ponderou o facto de o pedido lhe ser feito por um familiar directo. Tudo indica que o PR despachou o assunto como faria com qualquer outro, enviando-o para o governo e daí seguindo as vias normais.

Neste caso, contudo, a adopção do procedimento usual não impedia a influência do PR, mesmo que não fosse intencional. Ao longo do curso que o assunto teria na administração, era sempre possível identificar o remetente e o peticionário. Os decisores envolvidos percebiam ser um assunto enviado pelo PR e respeitante ao seu filho. É bem provável que se sentissem condicionados nas decisões que tomassem, mesmo que não houvesse essa intenção.

Ninguém pode impedir que um familiar lhe venha pedir que exerça o poder a seu favor, mas neste caso de particular sensibilidade muito do que sucedeu teria sido evitado se o procedimento presidencial tivesse sido, em vez de encaminhar o pedido do filho, como qualquer outro (que na verdade não era), tivesse encaminhado o próprio filho para contactar directamente os serviços clínicos do hospital. Um psicólogo evolucionista diria que o PR não resistiu à fórmula de Hamilton: a proximidade genética estimula os comportamentos de cooperação…

Levar o populismo ao colo até às eleições

Independentemente das conclusões dos inquéritos em curso para apuramento de responsabilidades, a imagem do PR sai afectada. Isto ocorre pouco depois das investigações sobre suspeitas de corrupção na equipa governativa terem posto em causa tanto a confiança no governo como na independência da justiça. Este ambiente de suspeição em relação às instituições e às suas lideranças, e a indignação causada pelas explicações atabalhoadas, os tacticismos, e as faltas à verdade de alguns responsáveis, é o caldo em que cresce a adesão à retórica populista.

Os últimos acontecimentos reforçam em muitas pessoas uma ideia central que caracteriza o populismo: a sociedade está dividida entre uma elite corrupta que detém o poder, goza de privilégios e não tem contacto com a realidade, e o povo que é explorado e não tem acesso aos seus direitos. Os casos de nepotismo, de abuso de poder e de tráfico de influências, envolvendo figuras públicas, dicotomizam a percepção da realidade social em “eles” e “nós”. Uma minoria que goza de condições de excepção e de vantagens que concede a si própria, e os restantes cidadãos.

O populismo também costuma assumir uma postura de superioridade moral que acaba por ser reforçada por estes acontecimentos. Os casos de corrupção são usados para generalizar a ideia de que os órgãos da democracia liberal estão minados pela corrupção e que é preciso fazer uma “refundação moral da sociedade”, para restaurar a ética e os bons costumes. Os casos de corrupção, comprovados ou sob suspeita, exigem, do seu ponto de vista, mais do que punição legal, a “reforma moral” de um sistema político que está decadente. O populismo, de esquerda ou de direita, reclama-se da sua exemplaridade moral, e é severo e justicialista.

Outra tese populista que a actual situação ajuda a disseminar, é a ideia de que os líderes que a sociedade precisa são aqueles que dizem o que as pessoas pensam, e utilizam a sua linguagem. Estabelecem uma conexão emocional com o cidadão, polarizando o ressentimento e o protesto, e propõem soluções simples para “cortar os males pela raiz”. A proposta de medidas enérgicas e radicais para lidar com a crise, veiculadas numa retórica agressiva e emocional, capta facilmente a adesão de muitos que se sentem indignados ou excluídos.

Finalmente, a falta de transparência, as contradições nas declarações públicas dos responsáveis, as novas informações que aparecem permanentemente comunicação social e a incerteza quanto ao desfecho da actual crise política, geram um cenário complexo que excede a capacidade de processamento cognitivo da maior dos cidadãos. Perante cenários complexos e caóticos que não conseguem descodificar, as pessoas estão mais receptivas a diagnósticos esquemáticos, e a soluções simplistas e radicais.

O discurso populista torna-se mais atractivo na medida em que aponta directamente as causas e os responsáveis pelos problemas (a governação socialista, os lucros das grandes empresas, a imigração desregulada, a venda da propriedade urbana a estrangeiros…) e apresenta soluções simples e facilmente entendíveis, para os problemas mais complexos. Dá sentido ao presente e uma perspectiva de esperança no futuro. As situações complexas de crise tornam o discurso populista cativante pela resposta emocional, mas também conferem lógica e clareza à percepção da realidade.

As suspeitas de corrupção que levaram à queda do governo e agora o caso das gémeas que feriu, com razão ou sem ela, a imagem do PR, contribuem para a falta de confiança nas instituições da democracia liberal e para colar abusivamente a ideia de “elite corrupta” aos líderes do grande centro político que tem governado o país desde a revolução de Abril. A ideia de que “são todos iguais” alimenta o abstencionismo e a fuga de apoios e intenções de voto para os extremos do espectro político, onde dominam os partidos de protesto, as propostas radicais e o discurso populista.

Não admira, pois, que o extremismo e o populismo sejam os que mais ganham com a indignação e o cepticismo. E fazem-no sem grande investimento e sem precisar do apoio activo da comunicação social. O aumento das intenções de voto nos partidos mais radicais é o resultado da crise social, política e institucional que atravessamos, e do trabalho menos visível mas muito eficaz que desenvolvem nas redes sociais. Neste quadro, os movimentos de índole extremista e populista pouco têm que fazer além de capitalizar os efeitos negativos da actual crise. Estão a ser levados ao colo pelos erros e disfunções da democracia liberal e, sobretudo, pela irresponsabilidade e falta de ética de alguns dos seus responsáveis. É caso para dizer que o populismo agradece. A democracia é que não.